De modo a divulgar o voluntariado pela nossa comunidade, trazemos-te o testemunho da nossa colega Adriana Gomes que vivenciou durante 1 mês a cultura de São Tomé e Príncipe e ajudou a fazer a diferença. Aqui podes ler a entrevista e aprender como é que funcionam estes projetos de voluntariado internacional e que tipo de situações poderás vir a encontrar caso dês este passo em frente e decidas experenciar por ti mesmo!

Como é que descobriste a organização?

Então eu sempre quis fazer voluntariado e há muitos anos que andava à procura de uma organização para fazer voluntariado e, na internet, se vocês pesquisarem, há uma infinidade de associações e a maior parte nem são portuguesas, mas eu queria com uma portuguesa para ter a certeza de que estava ser bem informada e poder estar presencialmente com as pessoas que comandam a associação e falar mais sobre isso. E então eu descobri a Para Onde, na internet, e a Para Onde é, basicamente, uma associação que está subdividida em várias, ou seja, a Para Onde é uma associação que trata da comunicação entre as pessoas que querem fazer voluntariado e as várias associações que existem no terreno, então eu estive a pesquisar mais sobre essa associação, li mais sobre essa e decidi que era com esta que queria fazer. 

Como é que escolheste o projeto para onde querias ir?

Eu sabia que queira ir para África, portanto foi mais fácil decidir, e estava indecisa entre Guiné Bissau, que dizem que é dos piores sítios para nós irmos e São Tomé e Príncipe, e depois eu vi muitas pessoas falar de São Tomé e Príncipe, mais precisamente do Projeto Guadalupe, existe São Tomé e Príncipe cidade e São Tomé e Príncipe Guadalupe, e eu escolhi São Tomé e Príncipe Guadalupe e conheci as pessoas que estão no terreno, e quem está no terreno é a Associação Kêlê, e foi assim que eu fui pesquisando e decidi pronto “é com eles” e com eles temos direito a fazer uma formação pré partida e depois ainda eles falam-nos daquilo a que temos direito e daquilo a que não temos direito e fazem meio que uma abordagem geral daquilo que podemos encontrar. Eu acho que daquilo o melhor que eles nos disseram foi não criem expectativas, tanto para o bem como para o mal e foi aí que eu fui começando a gerir as coisas e, lá está, tudo com um ano de antecedência no mínimo, que acho que é o melhor.

Porquê África:

Eu no inicio era para ir com a minha melhor amiga mas entretanto ela não conseguiu e pensamos ir para Camboja ou Tailândia, porque tínhamos uma amiga que foi para a Tailândia e amou a experiência, e tivemos a ver Camboja porque há um site que é WorkAway onde tu trabalhas o que seja, por exemplo vão para as Maldivas e tão lá a trabalhar tipo 3 horas ao dia e tem alojamento, alimentação tudo incluído e essa rapariga trocou aulas de Inglês para conhecer Tailândia e teve lá 4 meses. Mas eu queria algo mais certo porque vinha sozinha e por isso escolhi a Para Onde. Nesse site até tinha África, mas ir sem saber nada é um bocado assustador. A língua também foi um fator importante e a romantização do voluntariado na Internet também ajudou.

Sentiste-te segura durante todo o processo, desde o momento da inscrição até chegares ao terreno?

Eu escolhi esta organização porque eles nos deixaram super seguros, e mesmo com os meus pais era um bocado estar-lhes a dizer “olhem, eu vou um mês para São Tomé, lá não há rede, não há eletricidade a maior parte do tempo, não tenho como vos contactar, não sei se vou conseguir falar convosco / se não vou, lá as mulheres brancas são vistas como, sei lá, umas deusas”, foi um bocado complicado isso e eu acho que esta organização ajudou imenso porque falaram com os meus pais e tranquilizaram-nos. Eu senti-me sempre segura porque eu já tinha falado com pessoas que já tinham ido para África fazer voluntariado, não no mesmo projeto, e disseram que lá as pessoas que vão para ajudar são super respeitadas, então isso deixou-me segura porque eu ia lá mesmo para ajudar, era o meu objetivo, e lá está, eu acho que a organização ajudou-nos imenso com o “tenham calma, está tudo bem, não vai acontecer nada e já imensas pessoas passaram por isso, portanto não vai ser convosco que vai correr agora mal”. 

Mas claro, havia várias questões que me preocupavam, principalmente as doenças, e lá aquilo, a malária, eu tinha vários problemas com isso porque a presidente do projeto que está lá ganhou malária, há dois anos, e ela sempre tomou as vacinas, ganhou malária e ficou com a malária e nem sabia que a tinha, porque lá esses insetos como foram erradicados basta uma picada e ficas com a malária, e eu estava assim bastante preocupada com isso. Tomei as vacinas, tomei a medicação mas eu acho que isso não garantia que tu não a apanhavas, e as doenças para mim era o pior porque depois vir para cá, poder contaminar alguém, para mim isso era a pior parte. Mas lá está, eu fiz tudo certinho, tomei a medicação enquanto estava lá, e depois quando voltei continuei a tomar a medicação e pronto, há muito mais a fazer, e acho que essa parte tranquilizou-me porque há muitas mais vacinas opcionais que eu quis tomar por descargo de consciência. Claro que acarretavam custos mas eu achei melhor para ir mais segura. Em relação à segurança sim.

Foi fácil comunicar com os locais e habituares-te a uma realidade que é tão diferente daquilo a que estamos habituados?

Ah sim, eu senti um bocado de choque cultural mas eu acho que é uma cultura muito receptiva e eles lá estão muito preparados para receber pessoas, para falar com as pessoas, e eu acho que o mais chocante é que eles falam português mas eu não percebia nada, era tão difícil, eles falam crioulo e eu queria que eles falassem português como nós, eles dizem que “ a portuguesa fala muito rápido, muito stressada”, porque nós somos muito rápidos a comparar com eles.  Portugal é um país em que está sempre a acontecer alguma coisa e lá não. O lema deles é “leve leve”, estavam sempre a repetir a mesma coisa, “leve leve, leve leve”, e basicamente é tem calma, vive a vida um dia após o outro. E uma coisa que era chocante é que eles escrevem como falam, e os próprios professores lá ensinam errado o português. Por exemplo, as palavras que têm dois “R`s” eles lá falam só com um “R” e escrevem só com um “R”, carro escrevem só com um “R”. Os próprios professores fazem assim e ensinam errado porque a maior parte dos professores sabe tanto como os alunos lá, e isso aí também é uma questão um bocado complicada. O objetivo desta associação que estava lá no terreno, era complementar o tempo de aulas porque a maior parte deles, como a escola não era obrigatória, chegavam a uma certa idade e abandonavam a escola, e então elas tentam combater um bocado o abandono escolar precoce, e então eles saíam da escola e vinham ter connosco, e nós tentávamos explicar, e havia coisas que nós estávamos a combater contra um professor que ensinava na escola, como é que nós íamos fazer isso? E depois eles escrevem mal, são pessoas já com uma idade, às vezes eu tinha alunos com a minha idade que falavam e que escreviam super mal, era muito estranho isso acontecer, quer dizer, contas simples eles não sabem fazer, e eu acho que, à medida que este projeto vai evoluindo cada vez mais, isto vai acabar mas, lá está, às vezes eu ficava lá a pensar, nós estávamos lá a lutar por uma coisa que um dia pode acabar, quando eles deixarem de ter apoio financeiro o projeto acaba, e isto é uma coisa que me fazia imensa confusão, quem é que vai dar continuidade a isto, entendes? Aquilo acaba e ficam só lá todos, não há ajudas, não há nada sem fazer nada e isso fazia-me muita confusão, e mesmo quando eu voltei era assim, aquilo que me partia mais o coração era se não houvesse pessoas que iam depois dar continuidade àquilo que já tinha sido feito.

O facto de o português ser um bocadinho diferente não impediu de te relacionares com as pessoas, as crianças ?

Não, não, de todo. Nota-se que as crianças lá são muito carentes e têm muita falta de afeto porque em casa os pais não lhes dão isso e, por exemplo, lá cada mulher tem muitos filhos e cada uma só pode ter um homem mas o homem é muito fraco se tiver só uma mulher, lá a cultura é assim, um homem tem várias mulheres, e então um homem tem para aí 50 filhos – 10 de cada mulher – e é o normal. Havia muitas vezes que estávamos na sala de aula e eu sou irmão deste irmão que é irmão deste aqui que é irmão daquele mas é tudo de mães diferentes, era chocante, eu assim vocês são todos primos, e basicamente era isso, é uma casa com, sei lá, 100 pessoas é assim aquilo é muito normal tipo 100 pessoas. Há um edifício que está abandonado numa das ruas onde nós estávamos que era um hospital abandonado, era o único hospital de São Tomé, ficou abandonado e vivem lá centenas de pessoas dentro das salas, e eu fico como assim, foi uma experiência meia estranha entrar lá, não sei, é como se estivessem todos, não é férias, mas eu sinto que as pessoas estão todas de férias, ninguém trabalha, ninguém faz nada, entendes. E é mesmo estranho para mim, e depois o objetivo deles é ganhar dinheiro, chega à noite bebem uns copos, e é só isso. E ganham dinheiro como? Com os turistas, fazem as pulseiras e vendem aos turistas, já as mulheres não fazem isso e costumam estar em casa. 

Eu acho que não há muita noção de dinheiro ainda lá. Lá é só viver, um dia após o outro, depois a natureza dá de tudo, a natureza dá tudo pronto. Para mim o mais chocante era as árvores, estavam carregadinhas de frutos, desde banana, papaia, então eles nunca passam fome. Eu acho que se a natureza não proporcionasse aquelas condições que não havia ninguém a viver lá, porque ninguém vai ao supermercado, não existe esse conceito de eles terem de ir ao supermercado comprar comida, nem havia um supermercado lá na zona onde nós estávamos, só havia na cidade. E parece que as coisas estão feitas lá de maneira que aquelas pessoas consigam sobreviver, entendes. Se eles tivessem as condições de Portugal em que não há árvores, não há nada, ninguém vivia, não havia pessoas lá. Isso para mim é, assim, parece que o universo está feito daquela maneira e pronto. 

E depois aquilo é tipo, mas a sério, é que é tão bonita a natureza lá, é tanta natureza e tudo tão bonito que nem parece real, às vezes ainda fico a olhar e a tentar imaginar que estou lá em São Tomé e não dá, tipo aquilo tu sentes assim tipo o ar a respirar é assim uma tranquilidade tão grande, uma leveza. Eu lembro-me que quando cheguei lá a primeira coisa que uma rapariga me disse, a minha colega disse-me assim “oh Adriana tu estás agora a respirar, mas tu não sentes que está sempre um respirar assim muito profundo, muito calmo” e eu “eu também sinto isso” e tipo nós ficamos sem eletricidade mas está-se bem. Nós nos primeiros tempos que lá estivemos nós íamos comer a uma tasquinha, agora vou falar da comida, não sei se isso também era uma questão que vocês queriam abordar mas pronto estava a dizer que, lá está, para mim eu dou-me muito bem com peixe, arroz e havia pouco mais, lá não havia carne, lá uma pessoa para comer carne tem de ser muito rica, é esse o conceito, eles comem do que a natureza dá. Lá o mar dá peixe eles têm peixe, o arroz, a banana, e era isso as nossas refeições quase todos os dias. 

E, então, quando nós íamos comer, havia lá uma senhora que por acaso esteve em Portugal emigrada mas voltou para lá porque não aguentou todo o sistema de Portugal e voltou para lá e ela preparava-nos as refeições que era um pratinho com aquela comida, e a maior parte das vezes ficamos sem luz, e aquilo tipo não havia luz durante a noite, e nós perguntamos muitas vezes aos meninos, eles estavam lá sozinhos, meninos, sei lá, de 10 anos, e nós perguntávamos muitas vezes “mas como é que vocês fazem, vocês estão aqui sem luz, mas como é que vocês voltam para casa?”. Nós ali preocupadas com eles e eles “não te preocupes, nós temos as luzes das estrelas, está tudo certo”, para eles não havia problema “nós temos olha a lua, enquanto a lua estiver ali está tudo certo”. Ele assim e nós ficávamos tão preocupadas com aqueles meninos, crianças mesmo pequenas a andar sozinhas na rua, àquela hora da noite, sem voltar para casa, e nós estávamos a comer ali com o flash do telemóvel, a comer e a escolher as espinhas. Nós virávamos costas e estavam eles em cima dos pratos, a comer e a dobrar aquilo tudo, a pegar nas espinhas e a meter tudo na boca. Ai meu deus! Chegou a um ponto que nós já nem comíamos para eles comerem percebes, e nós dissemos “isto tem de acabar senão acabamos nós também a passar fome”.

E foi aquilo que eles também nos estavam a dizer, tentar não incentivar muito isto – “vocês não estejam a habituá-los a terem comida porque eles não estão habituados a isso, e se nós formos habituá-los a comerem e a terem comida depois vai ser muito mais difícil de desabitua-los”. Então era super complicado, eu estava a comer e estavam eles ali nas grades, porque havia umas grades a separar, à espera que nós parássemos de comer para pegarem nos nossos restos e comerem tudo, seja espinhas seja o que for. E comiam ali com uma velocidade e com uma vontade que eu ficava tipo, meu deus, eu sou tão sortuda e nem sei. Eu lembro-me de levar umas bolachas de chocolate na mala e eu não devia ter feito aquilo mas eu dei-lhes as bolachas e estavam todos a virem para cima de mim, eram para aí uns 20, todos à minha volta, a querer bolacha, a pedir bolacha, e a pedir por favor e eu a pensar “o que é que eu vou fazer agora” eu dava meia bolacha para cada um deles e eu “ai meu deus, nunca mais vou voltar a dar comida”. 

É mesmo complicado estas situações porque tu ficas a perceber o quanto nós temos tanto. Às vezes eu ia sempre com umas roupas de malha ou assim uma coisa diferente e eles assim “quando te fores embora posso ficar com a tua roupa, vá lá, por favor, por favor” e eu “claro!”. Aliás, eu deixei a minha roupa toda lá, eu abri a minha mala e disse assim “escolham o que quiserem, tirem o que quiserem, fiquem com o que quiserem”. Eu cheguei a casa e a minha mãe assim “Ó Adriana, a tua roupa?” e eu assim “deixei lá, deixei tudo lá”. 

Eu queria deixar lá o telemóvel, uma loucura, andei durante um ano a pedir aos meus pais para me comprarem um telemóvel. E houve uma rapariga que estava a chorar por a família ter vindo para Portugal e ela não conseguiu o visto, foi assim uma situação do género, e eu liguei para a minha mãe “olha mãe eu vou dar-lhe o meu telemóvel, eu vou deixar-lhe um meu telemóvel” e ela “Adriana!” e eu “eu não quero saber, não preciso do telemóvel para nada, eu não quero saber do telemóvel”. 

Passei uma fase em que foi tipo um choque quando eu voltei aqui e eu estava tipo “a minha vida é uma seca, eu estou aqui fechada em casa, eu quero estar na rua, eu quero dançar, eu quero ir para a praia!”. Depois eu voltei logo para universidade, voltou logo o stress todo e depois voltei a entrar no ritmo, tipo automaticamente voltei, o meu chip de Portugal voltou a entrar, mas a sério, eu só pensava “eu estava tão bem lá, só quero voltar, esquece, quero tanto voltar para lá” vocês não têm noção. 

Mas eu acho que quando voltar vai ser 6 meses, é o melhor conselho que eu dou toda a gente, ao irem, ao fazerem o investimento de pagar um voo para lá, que é caríssimo, fiquem lá mais de 1 mês que 1 mês não dá para nada, 1 mês passa tão rápido mesmo, é muito pouco tempo. Eu sinto que tu crias uma ligação com eles, estás na melhor fase, conheces todos, sabes os nomes todos, e vais embora. Eu assim para eles “olha agora vou embora” e eles tipo “não vais nada, não podes fazer isso, nós aproximámo-nos de ti” e eu “vou, vou” e eu só chorava, chorava, e eu assim para a minha mãe “eu não quer voltar para Portugal, não me obrigues” e ela “mas então o que é que tu queres fazer, queres ficar aí para sempre?” e eu “sim! Por favor, mais um mês” e ela assim “mas se tu ficares o mês de outubro”, que eu fui mês de setembro, que eu não consegui no mês de agosto, se eu tivesse ido no mês de agosto ficava até ao mês setembro obrigatoriamente, só que eu fui no mês de setembro, não podia ficar no mês de outubro senão ia perder as aulas. E a minha mãe assim “então mas tu não queres voltar mais para Portugal?” e eu “não, eu não quero voltar para Portugal, não quero voltar a sentir stress, eu estou tão bem aqui, leve leve para sempre, estou tão bem aqui, eu não quero, e as crianças, elas não querem ficar sem mim”. E depois elas a chorar e a dizer “Adriana tu não podes, não podes ser mais uma ir embora e a esquecer-se de nós”. 

É que eu nem tenho como as contactar não é, que eles não têm telemóvel, não têm nada. Isso aí, essa gestão emocional foi mesmo complicada. 

Mas olha regressei e agora quando for tem que ser com tempo e com calma e é o que eu digo a toda a gente: se forem tipo nunca vão um mês, por favor, tipo não se vão arrepender, a sério, e ao ir tirei uma boa, sei lá, final de faculdade, o que puderem, também acho que é preciso poder isso, não é, assim poder parar sei lá 6 meses da tua vida e estar lá 6 meses. É assim um bocado complicado mas eu acho que ao fazer o investimento tem que fazer a longo prazo porque estás a pagar um voo tão caro para depois estar lá só um mês não compensa, não compensa mesmo. A sério, eu acho é o meu maior arrependimento que eu tenho em relação à viagem, se tiver algum é esse, é ter ficado pouco tempo.

A “Para Onde?” ajudou-te com essa questão da gestão emocional?

A Para Onde eles de vez em quando mandam mensagens e mandam bastantes coisas para nós avaliarmos a viagem e tudo, mas eu não voltei a falar com eles porque a partir do momento que eu entrei para a Kêlê, para São Tomé e Príncipe, eu não voltei a falar com eles, ou seja, a Kêlê foi quem dinamizou tudo, e as responsáveis pela Kêlê estão lá no terreno. Elas estiveram comigo no terreno, são 3 raparigas super novas que pegaram naquilo e que meteram aquilo à frente. Elas têm à volta de 25 anos, elas estão lá à frente daquilo tudo e deixaram de viver em Portugal, estão a viver lá e é o projeto de uma vida, só vivem para aquilo, espetacular, que sonho. 

Tiveste a oportunidade de conhecer pessoas novas e fazer amigos, quer locais quer outras pessoas que também estavam a fazer voluntariado pela primeira vez?

Sim foi a minha primeira vez a fazer assim um voluntariado internacional mas há outra coisa que eu queria dizer, por favor, é que eu acho que para fazer voluntariado não é preciso ser internacional, e é isso que eu queria dizer que vocês quiserem apelar e fazer algum tipo de voluntariado meter sempre um parêntesis bem grande que não é preciso ir para fora para fazer voluntariado, há várias causas que a Para Onde tem aqui em Portugal, até mesmo em Lisboa, eu acho que também no norte. E depois há pequenas coisas tipo a Missão País, há várias coisas de voluntariado e não precisamos de ir para fora, não precisamos de estar a gastar, não precisamos de estar a investir, é isso que eu quero deixar claro. Às vezes pequenas coisas que nós podemos fazer, seja questões ambientais, seja ajudar pessoas que nós conhecemos na nossa terra, já estamos a fazer voluntariado e não é preciso ir para fora, podemos melhorar o que temos à nossa volta, não é, só essa ressalva que queria fazer. 

Mas em relação às pessoas e aos amigos que eu fiz, eu tive uma sorte gigante com as pessoas que eu fui. Nós éramos 7 ou 8 voluntárias que foram no mês de setembro, eu tive a sorte de todas nós irmos só no mês de setembro, ou seja, não havia ninguém que estivesse lá estado antes, fomos todas a partir desse mês, e eu adorei. Nós demo-nos tão bem, aquele grupo estava mesmo bem, mesmo a dar aulas, a explicar as coisas aos miúdos. E depois os miúdos têm uma energia que não dá para estarem quietos, são pessoas que estão habituadas a estar só no espaço exterior, como é que tu pedes uma criança que só está habituada a estar no espaço exterior para estar sentadinha 1 hora na cadeira. Nós às vezes saímos da sala, porque aquilo havia várias salas, e eles estavam em cima das mesas e nós “por favor”. Houve um que se agarrou a uma ventoinha que havia lá, que estava toda estragada, e ele agarrou-se à ventoinha e andava lá às voltas, vocês não têm noção. E depois eu “por favor” e depois eles são maiores do que eu, “por favor sentem-se” e eles “não, não, Adriana vem brincar” e depois lá está, nós dizemos um “r”, eles dizem dois. E depois eu era “ai como é que eu vou levá-los, eu não conseguia ser má com eles, era extremamente complicado. 

Mas eu acho que, lá está, nós como grupo, funcionávamos super bem, mesmo em casa, nós os voluntários vivíamos todos juntos numa casa, e essa casa, como vocês devem imaginar, não há água, não há eletricidade ou há mas era muito raro. E a questão da água foi muito complicada ao início porque imaginem tomar banho, fazer descargas, era muito complicado! Então o que nós fazíamos era havia vários garrafões já, de antigos voluntários que deixaram lá, e nós íamos a pé até uma fonte, normalmente até íamos ao almoço. Era um calor insuportável, na hora de almoço era muito calor mesmo, e nós lá íamos buscar garrafões, um caminho de 10 minutos parecia que era 1 hora. Eu tinha de fazer pausas, íamos com 3 garrafões debaixo do braço e voltávamos com eles cheios, chegávamos a meio e não aguentávamos mais, fazíamos uma pausa, estava eu a pingar água por todo lado. Essa parte foi super complicada e acho que foi mesmo desgastante, eu sentia um cansaço no final do dia tão grande. E pronto imaginem, vocês não têm noção,mas uma descarga era um garrafão e nós todos os dias tínhamos de ir buscar garrafões, tomar banho era mais um garrafão e depois havia alturas que nós íamos tomar banho às cascatas. Lavar o cabelo, nós começámos a dinamizar, lavávamos o cabelo nas cascatas apenas, entendem, era assim a nossa questão. Depois, como é que nós metíamos água gelada, a meter-se pelo corpo, ai eu nunca tive água quente, vocês não têm noção. Aquela água gelada assim no final do dia que estás assim mais em casa, a meter pelo corpo abaixo, e depois metias sabão, tinhas de voltar a meter água. E depois, sei lá, acabava a água, queres fazer uma descarga e não podias, tinhas de ir buscar. E o que é que acontecia, a maior parte das vezes não havia água nas fontes porque toda a gente usava água das fontes, então eu fiquei “o que é que vamos fazer agora, não há água em Guadalupe inteira, não temos eletricidade, não temos nada, e depois como é que vamos fazer descargas” depois, entretanto, nós alugamos uma carrinha e fomos quase à cidade buscar água. 

Aconteceu tanta coisa que eu acho que, se eu consegui superar aquilo, consigo superar tudo, qualquer coisa, é mesmo. E depois eu chego aqui, eu lembro-me de chegar ao aeroporto do Porto, e ir à casa de banho lavar as mãos, do nada sai água quente da torneira e eu “o que é que está a acontecer aqui?!” eu tipo assim “o que é isto, como é que é possível”, e eu a chorar, eu só chorava. Eu para a minha mãe “não quero água quente, quero água fria outra vez”, e a minha mãe “está tudo bem Adriana”. E depois a minha mãe a dizer assim “olha tu quando chegaste eu nem te reconhecia”. E depois imagina eu era uma rapariga tão certinha, e depois vinha com aquele estilo todo de não quero saber, com o cabelo todo desengonçado, eu andava com uma tesoura porque eu não conseguia penteá-lo, eu cheguei a um ponto que ele estava tão seco que era só nós pelo cabelo todo e eu andava sempre com uma navalhazinha a cortar o cabelo. Eu não penteava os nós, já nem dava, tipo aquilo é assim qualquer coisa de outro mundo. 

Mas lá está, eu vou voltar às raparigas, sim tive muita sorte com as raparigas que me calharam, as pessoas. Eu acho que o que fez a minha viagem e o voluntariado foram as pessoas, sem dúvida. As crianças são assim, espetaculares, e depois é um abraço, é um sorriso, é o está tudo bem. E depois passam por tanto aquelas crianças desde novas, porque lá há muito conceito de educar uma criança é bater na criança, e passam por tanto mas tanto, pois há algumas tão novas que trabalham. Mas tudo sempre com um sorriso. E depois metes uma música e lá vêm eles, eu acho que o que o que os faz mais felizes é uma música, metem uma música a dar e toda a gente dança, é uma festa logo, tipo Guadalupe inteiro fica em festa, basta ter uma rádio com música que já está tudo bem, já não há problemas nem nada. E eu acho que isso é mesmo espetacular porque eles têm tantos problemas mas ao mesmo tempo para eles não há problemas nenhuns, e nós ficávamos tipo OK não há problemas, que se lixe, que se lixe a fome, que se lixe tudo. Nós começamos a entrar na onda deles, entendes, tipo víamos coisas más a acontecer, que nós entendíamos que eram más e começávamos a achar aquilo tão natural que chegou a um ponto em que nós estávamos tão inseridas naquela cultura. Eu sinto que o momento em que me que senti mais inserida foi na última semana, que foi quando eu vim embora, e é por isso que eu digo que um mês não chega, não chega mesmo, porque há um início que é para tu te adaptares à realidade, é a fase de adaptação. Depois do início é mesmo às mil maravilhas, está tudo certo, tudo está a correr bem, mas no início houve uma fase em que “eu vou ter que começar a falar, vou ter que começar a dizer coisas”, e depois é o resto é, está tudo normal, estás inserida, estás bem, só quero ficar lá, e depois vais embora. Por isso, por favor, vão 6 meses para lá, se puderem, 6 meses no mínimo. 

Em relação às pessoas pronto, só para concluir, são tipo as pessoas mais incríveis de sempre, a humildade, a receptividade, tudo, são amorosas, são calorosas, é abraços, é sorrisos a toda a hora, as pessoas fazem mesmo a cultura daquilo, fazem a cultura, fazem o país, fazem a experiência, fazem tudo. E eu tive muita sorte, não só com os voluntários, mas também com as pessoas todas, as pessoas locais da ilha, tive mesmo muita, muita sorte, gostei de toda a gente, não há ninguém a quem possa apontar o dedo mesmo, gostei imenso.

Sentiste-te realizada e que conseguiste ajudar e fazer a diferença?

Pois, isso é um bocado complicado porque eu saí de lá a achar que não tinha feito nada, e eu até falei disso com as minhas colegas, e eu perguntei “vocês estão a sentir o mesmo? É que eu sinto que, sei lá, se calhar não fui útil suficiente”, e elas disseram que nós tínhamos sido úteis, só que como o tempo foi tão pouco que achámos que não tínhamos conseguido fazer a diferença. Eu acho que é muito complicado fazer a diferença em tão pouco tempo. Mas eu acho que o facto de tu estares presente, estares lá, de aceitares um abraço, aceitares um sorriso, dares conselhos, teres tempo para a pessoa, porque aquelas crianças são muito carentes e precisam que alguém se sente ao pé delas, que converse, que lhes toque, que tenha assim, sei lá, um gesto de amor, entendes, porque não há isso em casa, não há esse conceito, não há um beijinho e um abraço por parte da família.

Então eu acho que só estares lá, só dares esse tempo, já é super bom e eu acho que faço diferença com isso. É óbvio que a nível escolar que eu dei o meu melhor, especialmente na matemática porque é a área que eu mais gosto, então eu tentei dar o meu melhor, e nós todas demos o nosso melhor, só que como também eram férias de verão nós tentávamos também não massacrar muito. E eles faziam uma coisa que era, à sexta-feira, a Kêlê faz uma palestra sobre, não é dar dicas, nem é cultura geral, e não é só relações interpessoais, entendes, era mais uma formação em que escolhemos um tema e falávamos desse tema. E, por exemplo, já houve o tema central das relações sexuais, ou relações pessoais, ou que seja, isso nós depois de falarmos com os miúdos há coisas que eles não têm noções, tipo não há noção. Por exemplo, eles não sabem que é errado tipo ir à beira de uma rapariga apalpar o rabo, tipo isso não é normal, os direitos humanos também, então nós estamos a tentar mudar isso.

Claro que não vai ser de um momento para o outro, tipo “olha tu não podes sei lá chamar nomes, chamar tipo palavrões à tua irmã, ou dizer que ela é isto e aquilo”, nós não podemos chegar lá e dizer isto, entendes, temos de ir devagar e tentar contornar ao máximo as coisas. E uma coisa complicada é mesmo isso, é tu explicares a eles, sabendo que eles estão noutro chip e que não estão a ouvir aquilo que nós estamos a explicar, e é que eles estão tão habituados àquilo em casa, como é que tu vais explicar a uma criança que se calhar desde que nasceu até essas que nós dávamos explicações, que eram do 7º ao 12º, no caso uma criança, sei lá, de 18 anos ou se calhar mais velhas, que não é normal o pai bater na mãe, tipo sendo que em todas as famílias lá o pai bate na mãe, sempre. Como é tu vais dizer a eles que isso não é normal, não, se nasceram assim, acham que uma mulher lá tipo serve só para procriar família, entendem, e como é que tu vais dizer que não, que não é normal e que isso não está certo.

É complicado, então nós tentámos dar a volta ao assunto e, lá está, eu acho que quanto mais se vai falar que aquilo vai ter de chegar a um ponto em que vai ter de ser interiorizado, eu acho que eles vão chegar a um ponto em que não vai haver, não é opção, mas que já vão começar a entender o que nós estamos a dizer. E eu acho que é esse o objetivo delas, principalmente, é fazer com que o nosso normal de lá seja um bocadinho o normal deles lá, e que haja um bocado mais de direitos se calhar, especialmente para as crianças, que lá as crianças passam um bocadinho.

(entrevistadora – Pois, se calhar tu olhas para trás e achas que um mês não foi suficiente para fazeres uma grande diferença, mas o teu um mês por todos os voluntários que já estiveram nos anos anteriores e que estão lá sempre, a pouco e pouco…)

É isso, é isso que me deixa mais calma, é pensar que, se calhar no próximo mês e assim, vai haver alguém como eu que tenha tanta vontade de mudar como eu. E eu acho que isso é mesmo, acho que isso é aquilo em que me tenho de focar agora, mas saber que aquelas crianças estão lá e que estão a sofrer parte-me o coração mesmo, parte-me mesmo o coração.

O que é que fazias no dia a dia / Em que é que consistia o voluntariado?

Nós temos de trabalhar e o tempo de trabalho no voluntariado é cerca de 5-7 horas nos projetos, o nosso era de 6 horas, 3 horas de manhã e 3 horas de tarde e tínhamos os fins de semana livres que usei para visitar o resto da ilha. Durante a semana tínhamos sempre a mesma rotina que era acordar de manhã e lá o sol começa ás 5 da manhã e termina às 5 da tarde, ou seja, nós saíamos dos projetos e já tava completamente escuro, não conseguias ver ninguém na rua, o que não dava muito para aproveitar mas não era esse o nosso objetivo,o nosso objetivo era estar com as crianças, nós chegamos a um ponto que isso aí varreu um bocado para nós. 

Começávamos mais ao menos às 7 da manhã e tínhamos de estar presente às 8 ou 9, já não me lembro ao certo. Mas começava bastante cedo e nós acordávamos e íamos buscar o pão a uma senhora lá que nos vendia, e aquele pão, vocês não têm noção, era duríssimo, era tipo como esta mesa. Eu lembro-me que no primeiro dia vinha com tanta vontade de comer que estava cheia de fome, e quase que me ia saltar o dente. Mas a nossa casa estava cheia de mamão que é uma papaia gigante que há lá, e nós enchíamos também a barriga com isso ou com abacates que havia imenso.

Depois nós saíamos da porta e estavam os meninos todos que nós dávamos explicações, todos à nossa espera à porta aos berros. Nós estávamos a dormir e às vezes eu acordava e ouvia-os porque toda a gente acorda às 5 da manhã, começa muito cedo o dia para eles. Eu às vezes acordava porque estava a ouvi-los aos berros a dizer “ Venham Venham, Venham ! “. Tão a ver quando têm o primeiro dia de férias e estás toda cheia de adrenalina para aproveitar, isto é o dia todo deles (miúdos ) , então eu começava a ouvi-los e nós saímos e íamos com eles acompanhá-los até à escola e dava-lhes explicações. Aquilo era dividido por Inglês, Matemática e Português. Eu geralmente ficava na Matemática mas dependia e depois também era dividido por idades, e ,consoante o programa que nós tivéssemos na noite anterior, definimos o que íamos dar no dia seguinte, o que fazia mais falta e pronto, dávamos aulas aos meninos de Guadalupe de manhã. 

Depois vínhamos almoçar, geralmente aproveitamos a hora de almoço para ir com os motoqueiros, porque lá o meio de transporte é as motas, os rapazes geralmente quando terminam a escola o que fazem é ser motoqueiros, é a profissão da maior parte ou então a vender pulseiras. Nos saiamos de mota e 10 minutos depois os miúdos chegavam lá por um caminho que demorávamos na boa 1 hora, de pedras e eles iam descalços a correr

 E levavam-nos à praia, então a nossa hora de almoço era passada na praia ou então em casa a almoçar. Depois às 2 da tarde íamos para a roça Agostinho Neto que ficava a 15 minutos de Guadalupe, e na roça era onde dávamos explicações da tarde a miúdos maiores, do 7º ao 12º ano, e era mais complicado porque como eram quase da nossa idade, era muito mais complicado mandá-los calar ou tentar fazer pouco barulho, ou eles respeitarem-te, mas pronto, nós dávamos aulas de tudo um bocado e nós víamos um miúdo que reparamos muitas vezes que não via direito as letras e nem conseguia escrever em linha reta, eram para aí 2 miúdos que tinham dislexia só que lá, eles nem sabem o que é, nem querem saber. Havia outro que não conseguia distinguir as cores e muitos outros problemas que detectamos facilmente mas não havia nada a fazer porque não há oculista não há nada. Nós íamos detectando esses problemas e ensinando da maneira que conseguimos, tentamos jogar com as várias adversidades que havia. Depois nós saía-mos e estávamos lá no convívio com os miúdos, na maior parte das vezes ficávamos lá numa barraquita, numa mesa a conversar até ao final da tarde e depois íamos para casa, mas havia quase sempre festa lá na roça, ou música, ou sempre alguma coisa a acontecer e acabávamos por ficar por lá. 

A comida era espetacular e ainda bem que a minha mãe me ensinou a comer peixe, o peixe e o arroz lá são espetaculares, parece que é tudo diferente, tem muito sabor porque eles temperam muito as coisas com picante e o arroz é picante, extremamente picante e depois comecei-me a habituar a isso. A comida era super boa, jantávamos por lá, às vezes havia feijoada, que era incrível, mas não era com carne, era só com feijões. Depois voltávamos para casa e era essa a nossa rotina, mas havia sempre alguma coisa a acontecer, às vezes conhecíamos um miúdo ou a família dele. Acho que havia rotina ao mesmo tempo que não havia rotina, porque sabíamos que ia haver sempre alguma novidade que nos ia fazer pensar “ quem me dera adiar isto”.

Aliás houve uma rapariga que estava no 4º ano de medicina e ponderou desistir do curso e agora congelou a matrícula e foi para lá em Janeiro. Acho que aquilo muda muito as mentalidades até porque tive um ano a convencer os meus pais para me dar um telemóvel e eu queria-o dar a uma criança, agora percebo que não faz sentido porque eles nem sequer iam dar uso . Acho que quanto mais tivermos a dar-lhes, mais telemóveis, mais tudo, eles vão se habituar à nossa realidade e eu não quero, eu quero que eles continuem a correr, a andar a divertirem-se no meio da rua e que seja isso para sempre, quanto mais nós puxarmos o nosso mundo de cá para lá a níveis de bens materiais vai ser mais complicado para eles. 

Eles têm muito a noção que os brancos são ricos, independentemente dos brancos, e então eles acham que vir para Portugal significa ficar rico, eles tão sempre à espera de um visto em São Tomé e todos os dias saem aviões cheios de pessoas de lá para Portugal vir trabalhar. Eles acham que se virem para Portugal, fica-se rico automaticamente porque para eles ter um apartamento com uma cama é uma coisa de rica já que eles dormem no chão. 

Eu fico a pensar que se fosse a eles eu não vinha para cá porque “ok que somos ricos“ na perspetiva deles mas não temos metade do que eles têm e poder ser tão feliz sem nada é mesmo impossível aqui em Portugal.

Como é que fazias o câmbio:

Nós íamos a cidade numas carrinhas amarelas que passavam sempre lá de 9 lugares que geralmente levavam tipo 15 pessoas umas em cima das outras e era super normal . 

Lembro-me de uma história horrível que fui com um motorista que estava super bêbado, e toda a gente estava aos berros dentro da carrinha.

Então nós íamos até à cidade e chegando à cidade havia um sítio que era só um monte de homens que mal viam uma carrinha com brancos metiam as mãos dentro da carrinha, quase que nos puxavam para fora a dizer “ Trocar dinheiro, trocar dinheiro , 1 euro, 1 euro” e nós dizíamos sei lá 100 euros que dava 2500 dobras. Fiz câmbio para aí 3 vezes porque eu gostava de ir visitar aos fins de semana, então gastava mais dinheiro. 

Por exemplo, nós íamos para a praia com os motoqueiros e gastávamos 10 dobras que era para aí 40 cêntimos, como as coisas eram extremamente baratas permitia-nos fazer mais atividades. Eu gostava imenso de ajudar os motoqueiros porque acabavam por ser nossos amigos ou as senhoras da comida que nos preparavam as refeições, eu tentava ajudar o máximo porque contribuía para a economia já que lá não é uma zona de turistas, só quem faz voluntariado é que ajuda. As coisas lá são muito baratas mesmo, a comida é super barata, conseguia fazer refeições de 1 euro e meio.

Tiveste alguma dificuldade inesperada ou imprevisto ?

Tive um muito grande que foi uma vez que tava a ir para a praia e magoei-me e abri o pé pensei “ abri o pé tass bem “ e continuei a andar, a mancar mas tava tudo bem. Mas lá há um bicho que não me lembro muito bem como se chama, e esse bicho entrou nessa ferida e rebentou-me as pernas todas e do nada fiquei cheia de bolhas nas pernas todas e eu nem liguei porque lá há muitos mosquitos e andávamos cheias de sprays mas não adiantava nada, andávamos sempre todas picadas e chegou ao ponto que só ignoramos. Então no caso daquele bicho, ele entrou pela ferida e fiquei com “buracos abertos” nas pernas, não sei explicar, e por acaso as voluntárias que estavam lá, que eram as organizadoras disseram-me “ olha isso é tal e tal “ e eu liguei à minha mãe e ela a dizer para vir para Portugal,  mas faltava uma semana para eu ir e fui metendo uns cremes na fé e quando voltei para Portugal, curei aquilo. 

Acho que foi um dos maiores imprevistos, mas também ganhámos muitos problemas digestivos porque a comida é extremamente diferente e o nosso corpo demora a habituar porque passamos do 8 para o 80 mesmo, na temperatura, na comida, nos horários e estamos sempre a mexer-nos, o cansaço começa a acusar e eu acho que se pudesse fazer uma coisa diferente seria ir para lá com mais calma porque eu cheguei e queria fazer isto e aquilo e lembro-me de chegar ao final de semana e só queria ficar deitada um dia de cama . 

Uma altura estava tão cansada que notei isso a explicar aos miúdos porque estava sem paciência e disse que estava mesmo muito mal, e passei o dia todo a dormir, depois entrei num ritmo mais calmo e habituei-me lá .

Outra coisa que tenho de dizer é a Kêlê Faz parceria com uma associação chamada “ Pão por deus” que é responsável por dar uma refeição por dia às pessoas que não tem mesmo hipótese de sair de casa, que estão muito mal e debilitadas . E na hora do meio dia uma vez por semana uma de nós ia levar essa comida e foi aí que experienciei coisas mais chocantes porque nós entramos na casa dessas pessoas e desde o cheiro a tudo era chocante, Lembro-me de ver um senhor que tava com uma rede de mosquitos enrolado o dia todo e uma vez chamei por ele e não sabia se tava vivo ou morto mas acabou por acordar, e estas partes foram mais complicadas, os meus maiores choques e fiz para aí 3 vezes.

A questão da segurança comparada com Portugal:

Lá não havia nada a acontecer e sentia-me super segura, saía de casa sem telemóvel às escuras e andava sozinha, e em Coimbra nunca me sentia segura a sair sem telemóvel, sem chaves, às escuras.

Mas uma coisa é certa, os homens de lá tem um complexo gigante com as mulheres brancas , então se forem loiras são vistas como intocáveis, e vistas como o desígnio da perfeição por ser uma coisa tão diferente do que estão habituados. E então era muito complicado porque aqui é o chamado “Assédio” mas eu não quero dar estas palavras porque é demasiado pesado, e lá é uma coisa muito normal e então eu não posso levar a mal porque lá quem tava a mais era eu. Então como as mulheres são vistas como um adereço, eles tratavam-nos um bocado dessa forma, sempre a mandar, ou a assobiar ou isto e aquilo, principalmente os homens mais velhos e quando íamos de fim de semana para outro sítio de São Tomé visitar, era super complicado porque eles não estavam habituados a ver mulheres brancas lá no meio do nada. Lembro-me de um, que me puxou o cabelo e pediu para ficar com uma recordação do cabelo e para casar com ele, e puxavam-nos. 

Nessas alturas já não andávamos sozinhas porque aí já era mais complicado. Às vezes nós íamos sempre numas carrinhas alugadas de caixa aberta a percorrer a ilha e se parássemos ou andássemos mais devagar, eles vinham para cima de nós, e na nossa zona como já tão há tantos anos com voluntários, é mais normalizado. Mas nós é que tavamos a mais e estávamos sujeitos a isso, por isso não me posso queixar.

Gostaste e correspondeu às tuas expectativas?

Eu acho que o melhor é não criar expectativas e eu não entendia isso e tinha as expectativas super altas, mas realmente faz muito sentido não criar expectativas porque tanto vai haver aspetos bons como aspectos maus, e só o valor que tu dás às coisas é que vai fazer com que tu balances isso, certo, e há muitas pessoas que dão valor a determinadas coisas e que lá não vão encontrar, e então acaba por tornar a experiência super desagradável para quem vai para lá com as expectativas muito altas. E como eu ia sem saber o que esperar foi ótimo para mim porque as coisas boas foram assim mesmo muitas e eu só quero voltar para lá por isso as expectativas foram correspondidas, apesar de não as ter, lá está.

Achas que foi uma experiência enriquecedora/ Recomendas a experiência ?

Então, acho que deu para perceber que gostei imenso e obviamente recomendo e por favor se puderem não vão só um mês e vão mais. Pretendo mesmo repetir e sinto que se um dia não repetir é por falta de oportunidade, porque se aparecer o mais breve possível eu repito e recomendo 100% e que não morram sem esta experiência, e não há idade para o fazer, até tentei convencer a minha mãe a ir, mas acho que não há mais nenhum momento da vossa vida que possas colocar em standby 1 ano ou 6 meses sem fazer muita diferença, porque vai chegar o dia que vais ter tanta coisa a acontecer que não dá para parar, e se há uma fase boa para pararmos a nossa vida é agora e por isso recomendo e quem puder até com a maior brevidade possível mas tem de ser pensado com tempo e ser levado até ao fim porque vai valer cada tostão. Há muito cansaço físico mas acaba por compensar!

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